sexta-feira, 24 de abril de 2015

••• [Poemas sem título ou a breve mão que sangra desinteressada pela noite que a vinha fechar]

Nuvem de gás Gum 29 (Hubble 25 anos)

a mão que te embala é a mesma que te acaricia
o seio
que te masturba depois

e enquanto se encurva o ar pelos promontórios abruptos por perto
removem-se uma por uma as pétalas desfeitas
em corpos que suam desamarrados a estibordo como se me importasse
o sangramento que a língua quer interromper.

Sangro-me arrefecendo as águas mais a sul
ígneas

arrancadas as linhas horizonte do nevoeiro imaginado
mais intenso e inenarrável. Ambos sabemos que o sol não nasce

numa casa fechada desabitada sem janelas
nem por um milagre rosáceo
e
se os dias demoram a chegar o fogo inicial arrefece repentino
vergado pelas nortadas desfolhadas. Alguns homens morrem

pelo cantar da anêmona errante e lúcida
sem habitarem o terraço que construíram abrigo das chuvas e do sol
a pino. Apenas um grito extremo que se repete como o areal inundado

tudo recomeça.

Mergulho-me em ti pelas veias abertas
recebes-me sossegando esta minha ânsia despojada
ilimitada
enquanto semicerras os olhos desintegrando-me nesse teu manto
azul de água. Assim


tudo recomeça.


(Ricardo Pocinho - O Transversal)


domingo, 8 de março de 2015

Sabia que sempre ouviria a fala do mar mesmo onde estava sentado tão longe de tão perto


Menção Honrosa XVII Prêmio Estadual Ideal Clube de Literatura – Contos, Prêmio Moreira Campos
In Antologia Ideal Clube de Literatura


Sabia que sempre ouviria a fala do mar mesmo onde estava sentado tão longe de tão perto
(Ricardo Pocinho pseudônimo Maria Francisco)

Desde sempre se lembrava de ouvir o mar mesmo quando aprisionado entre quatro cantos onde o sol jamais nasceria tentando não enlouquecer relembrava ondulações a beleza da violenta procela engolindo o areal na hora de o abandonar onde as crianças brincavam pelo verão quente.
Ao fim destes anos tantos ainda não sabia arrumar as manhãs por descobrir prolongando repousos ao abandono clamando tréguas ou pequenos esboços enquanto as entranhas do corpo zumbiam como medusas cobertas de luzes da abóboda boreal mas não se preocupava muito com isso agora que estava no topo do mundo; nunca lhe tinham quão difícil seria entender o estrondo dos trovões que antecedem o paraíso a eternidade talvez um sopro a mais de um vento norte desalinhado numa terra apressada em que as escuridões se clareiam desconsoladas ao contrário dos amantes em seus afetos sempre por demais frágeis. Um pouco antes tinha observado aquelas multidões vagueando símiles a folhas caídas tapando o húmus por entre estranhas conversas fingidas por perto mas tão longe jazendo adormecidas ou em suspiros e murmúrios controlados do outro lado do espelho ainda intacto em linha reta. Impossível não se deixar invadir naquelas pequenas batalhas vidas que mantêm as indiferenças e as contemplações por um breve silêncio repetidas pelo acordar subitâneo sem um começo perguntou-se então: “para que serve o som?”
A metamorfose da luz encadeava-o relembrava-se do caminho antes trilhado a repetição do que decorara na adolescência “gritas as cores do silêncio pelos sítios sem fim das mimosas das orquídeas o tédio que a poeira dos caminhos invade nada te trazem de novo nem a seda para cobrir a nudez da cascata” porque as partidas são como crepúsculos sós inertes construindo (ou reconstruindo) corpos recordações peregrinas aliviando pequenos esquecimentos na vã ilusão de alcançar.
I
Tinha chegado muito longe sempre com o mar por perto embora por vezes não o ouvisse e mesmo que o pouso ruísse pelo tempo perdido desta ou daquela noite inexorável cobria-se do vermelho incerto das cerejas da mesma forma que volvia olhares inflamados impregnados da maresia que o cantar das estrelas lhe provocava não as entendia nunca as entenderia mesmo se as ouvisse repetidamente até ao desiquilíbrio total do suor rorejando sem paragens libertando cada poro da sua pele já gasta das tempestades de si recriando a nova roupagem com as raízes expostas a ventanias inventadas depois vinha o centro as pedras vivas o intermitente sentido das coisas que queria esquecer.
II
Tudo lhe era estranho até a partida pela noite em que os meteoritos resolveram aparecer em catadupas desencalhados da escuridão adormecida frustrando cálculos longitudes ou latitudes iluminando até uma lua obesa envolta pelo cansaço recolhia a cortina mas precisava do rumorejar da corrente de um ofegante rio unindo-se mar afora sim.
Ao princípio tudo lhe parecera entrelaçado não fossem as imagens que fixara envoltas pelo sonho fio de linho olvidado sem utilidade e tinha a certeza de que esta não seria a sua única ou última experiência ardendo a cada nova investida mesmo que os sargaços inventados alegrassem náufragos de si mesmos sabia que esta terra não era a sua o mundo e no mar sossegam as quilhas perfeitas os centros que apagam os luzeiros os faróis suspensos em promontórios escuros como o breu tudo se escondendo pelos areais submersos onde nasceram algumas casas com flores plantadas na janela.
III
Era tempo de ir não um regresso puro e simples até ao local da partida que o seu olhar já tinha implodido em cores dispersas sem jeito devido à visão perdida um dia pela manhã antecedendo as muralhas do crepúsculo breve e tatuado vezes infinitas como uma ave morrendo em pleno voo antes de descansar nas nuvens sôfregas tudo completando; contemplações dos altos inimagináveis onde se agarrara como uma lapa mesmo que as visões sossegassem apenas por alguns parcos segundos regressariam as outras paragens mais distantes de mundos atropelando-se reconstruindo abismos em bruto nesse afã terrível de conquista anovando velhos ódios vinganças jamais esquecidas símbolos sem nexo desfasados onde o antes caminhava por perto pelo piscar de olhos a bombordo.
...
Sabia que jamais regressaria agora que tinha chegado ao cume do mundo onde o som eco se multiplicava por mil e o acordar na rododáctila saciada afugentara as trevas o vendaval prenunciando a luz de um novo e magnífico dia.
As aparições que as sombras deixaram de refletir desfaziam-se por entre as escarpas pintadas de cal branca ferindo e incomodando os círculos que restaram sem princípio sem volta a dar mesmo quando as luzes se voltarem a apagar pelas paredes das rochas a pique suspiros credos escuridões e onde o cheiro das madressilvas escondem andorinhas lá longe pelos nevoeiros que tudo cercam os homens então confessam-se desapaixonadamente às marés vivas caladas impessoais rasgando eternas memórias desta terra não despojada de gritos perdidos inventados pelas horas desabrigadas com o tamanho das cousas.
Brotam desassossegos.
...
Feridas e cicatrizes crepitavam em falsas tréguas cansadas do voo tão extenso desconhecendo pousos ou cintilantes indicando rotas alguns clarões repentinos se repetiram incandescentes.
Já tinha descansado o suficiente e a sua visão tudo tinha captado ponto por ponto mesmo os pormenores mais ínfimos e embora o níveo fosse predominante por todo o lado se esticasse o pescoço tocaria no azul que cobria o céu de par em par emocionou-se.
Existirão um dia mais tarde tentativas para se explicarem as confidências desconhecidas os nomes dissipados pelo tatear de nadas arrefecidos por sentimentos estranhos que tudo atrapalham e perdem-se os tempos tentando conquistar espaços limítrofes quantos lugares cabem dentro de cada um de nós sem os defuntos olhos negros ou o branco do luto?
Sabia que sempre ouviria a fala do mar mesmo onde estava sentado tão longe de tão perto num repente levantou-se as asas já estavam secas.
Rodou o corpo olhando com toda a atenção mais uma vez as montanhas dispunham-se enfileiradas e a neblina tapava os vales cobertos de neve.
Agradeceu então.
Ao mesmo tempo que o bater das suas asas ganhava mais intensidade um curto salto foi suficiente para que o vento o envolvesse totalmente e o voo recomeçasse nas direções do mar por perto.
Deixara de ser o habitante de si próprio.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

[verberam os ramos antes em sossego aquém das trajetórias sibilantes]


verberam os ramos antes em sossego aquém das trajetórias sibilantes

o vento
uiva como o sacrificado
ajoelhado

pelas vertentes sinuosas
agrestes

de nada serve esconderes os passos em volta
inquietos
por essa maré errante que se esvai
busca mais vazio
mais longe

mais além.

As inquietudes invadem então as horas
numa antecâmara estranha
ritmada pelo desassossego rápido feroz
e pouco interessante


do acordar.


ali
o poema é o imortal

ser

[velar-te-ei desabitado
desobrigado]

então.



(Ricardo Pocinho – O Transversal)



quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

[poder-te-ia falar num céu sem estrelas]

grande baleia branca Migaloo


poder-te-ia falar num céu sem estrelas
destelhado
ou da hora de Prima que antecede o começo
vagabundo

mas perdi-me neste mundo que nunca foi meu
[a vida]
sórdido

veleiro que se afasta ao som do vento
sem tripulação.

há sempre o outro lado
a estrada sem curvas encruzilhadas
a maré parada

um fio deslumbrado carregado de espantos
[nunca as descobertas]
que esconde a raiz a água.

findo o mar perfeito
enrola-se a brisa

e nenhum sacrifício resta
apenas a plenitude deste tempo gasto.


o gesto
as mãos
o halo da maresia infinda

a distância

[um luar que pousa em nossas mãos].


(Ricardo Pocinho - O Transversal)


sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

[de onde vens alma breve?]

Wilie Kessel Photography

de onde vens alma breve?
donde vindes filho meu?

do alto mar onde nasceste sem relâmpagos
iluminando alguma aurora mais escura

ou

da masturbação infame das ondas em teus olhos cansados?
[tanta puta de interrogação sem destino]

tanto desespero sonâmbulo
subcutâneo

sem hora certa
amor mal soletrado que se arrasta
por mais um dia:
igual
sem sorriso.

O medo do princípio e fim.

Não consigo adiar o grito alumbrado
nem deixar de sentir a árvore florescendo no silêncio noite
das falas que se conhecem livres
afoitas

não
não quero mais

o abstrato da poesia sem sentido sentimento
dor saudade
[que se danem o amar e o respirar]
a redução do tempo evidente
o crepúsculo que se esconde

rápido.

diante de mim o mar eleva-se abrupto
concreto
fúria

para onde me levas alma contínua?

Talvez já não queira ser.



(Ricardo Pocinho – O Transversal)


sábado, 24 de janeiro de 2015

[e são regressos as simples brisas restantes]


e são regressos as simples brisas restantes
antes as repetições cansadas
as preces escondidas

o relento pronunciado e estrelado

enfim

as mãos unidas à garrafa vazia
o vinho bebido imolado. Escuridões.

Rendem-se os passos um dia à volta desse silêncio que queimava o chão duro e
concreto
sem areia molhada de mar empanturrada pelas promessas longínquas
a rapidez trepidante do pensamento envolvido por nevoeiros perpétuos. Esquecimentos.

É breve hoje a noite
sem paragens ou um adeus demasiado longo
tudo regressa
até as origens
e aquele peso amorfo desnovela-se
sem a velocidade do destino escolhido. Vem comigo!

Afaga as mimosas
que apenas


ficaram suspensas. Esperas.


(Ricardo Pocinho - O Transversal)

sábado, 10 de janeiro de 2015

[no meio dos caminhos sempre existirão águas amotinadas]


no meio dos caminhos sempre existirão águas amotinadas
as recordações que o tempo não esquecerá
as saudades
enquanto as pessoas se sucedem frente aos nossos olhos já secos

a viagem que nunca se repete.

No meio do poema havia um grão de areia
e uma semente
ambos dormindo longe
[muito longe daqui]

deslumbramentos roubados
ou sonhos
ou a cegueira inicial na escuridão
pela noite sem cintilantes e cometas

para onde vais?

Apenas o desejo da fusão completa
una

aumentando plena a cada suspiro mais forte
como sangue
que a trote calca o areal virgem continuamente

tateio o teu corpo alma
palmo a palmo
sem tempestades. Tateias-me sem as noites e as manhãs.

Do grão em areia nasceu a praia virada a sul
da semente nasceu a orquídea e uma sombra

perto do horizonte
e os dias não se estilhaçaram.

Continuo sem saber explicar-te
o mar que voa
a ave que sonha
o azul e o branco

que não se repetem

[jamais].



(Ricardo Pocinho - O Transversal)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

há sons que trespassam a noite [cortam-na pela metade]


há sons que trespassam a noite [cortam-na pela metade]
como sigas afiadas a pele

e gaivotas que gritam a norte em pleno Tejo nos dias tristes

planando sem o bater das asas
sem o descanso.

De nada serve o sufoco do caminhar
distante
incrédulo

calcando chuva a cada passo

nada trazem as canseiras que esgotam
atrofiam
ou aqueles horizontes insuperáveis
crepúsculos passageiros
desejos
perversos
que atravessam paragens certas.

Definha o sexo antes exuberante
empinado

breve o tempo que se desejava eterno
imparável
assim fossem os dias
as noites
o amar
porque não as fugas?

Tudo regressa.

Há gaivotas que gritam trespassando os silêncios das noites que sobraram dos dias tristes


[e há um rio que o mar engole].


(Ricardo Pocinho - O Transversal)