domingo, 29 de abril de 2012

saudade

Monsoon flora, India 1983 ©Steve McCurry/ Magnum Photos

I

desaguarei não como um rio
que jamais termina [...] nem pensamento,
como um mar, sim,
desaguarei como esse mar,

um desaguar repentino, violento,
[no teu colo],

e mesmo que não me sossegue
abrevia a distância em mim de nós.
Soltam-se as missangas que enfeitam os pulsos outrora cortados,
cicatrizes que a pele guarda,

ancoro-me num areal desconhecido.

II

saudade

não como o destino das viagens ou da pele que seca,
senta-te bem perto, lê-me o fado nas linhas da mão,

não ligues à linha da vida, fala-me do amanhã,
de algum ou outro sonho impossível, possível,

engana-me com o amar, jamais com o mar,
e no compasso dos pontos cardeais já apagados,
delimita as latitudes que as longitudes fiquem.

Horizontes sem as cataratas que imaginei,
sempre o saberei,

que os ventos despenteiam o mar em espuma esqueço-me,
o olhar fica-me sempre aprisionado

na dança das baleias

que ladeiam o barco que range.

Soltam-se as velas.






...
[do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti]




quinta-feira, 26 de abril de 2012

da tempestade

Zakopane, Poland 2004©Mark Power/ Magnum Photos
I

sossego-me
assim, em mim,
descalço pelas núvens em cirros, tão longe, tão longe,

e mesmo que um cometa passe, escondo-me,
sei que é uma visão.

Onde estavas ontem,
ou num dia qualquer que pode ser noite[?]
ou não estavas[?]

Meros tracejados de trapezista vendado,
sossegar-me-ei no cheiro a terra que inspiro,
serei estranho de mim,

de tão longe


II


da tempestade que me açoita, dá-me de beber,

tenho sede,
o sal invadiu a minha boca como o barco em alto mar,

e a madeira rangente suplica sossego,
num cais algures, numa baía escura
que o mar escondeu esquecendo as tormentas do vento norte.

Voltarei quando algumas das trevas
se afundarem,
quando do musgo nos telhados saírem as andorinhas e a rododáctila

irromper nesse tom rosado um novo dia.

De tão longe, tão longe,

vogarei pelos restos a mar que algum vento transportará
em saudade.





...
[do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti]


domingo, 22 de abril de 2012

do dia




I

das lágrimas, se dizem purificadoras
por serem salgadas,

serão os sete mares
todos os choros da terra?

Sei que,
onde se esconde a noite tapam-se alguns pirilampos
prisioneiros da luz,

sei que,
a noite esconde os olhares das sombras,
algumas escondem-se
delas próprias para sempre, jamais saberei se os lirios trocam entre si as poesias,

onde tantas as vezes os referi.


II

do dia onde encontro a tua nudez,

vingam-se as noites em chuva,
apagando as velas que restam,

e na sedição que sempre revelou,

esconde aqueles cometas que um dia viamos
por entre as nuvens transparentes.

Ficam-me os sabores dos seculos que se eternizam

pelo mar onde me navego,


ao longe avisto a ilha deserta que sempre procurei,
uma noite,

miragem, direi,

no centro da tempestade, sou.






...
[do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti]



sexta-feira, 20 de abril de 2012

descobre-nos



I

quero-me em tantos eus
que por vezes os esqueço,

e quando os reencontro já não os conheço
ignoro-os,

nesta

ignota viagem que queima a pele
ainda por sarar,
descobertas direi

nesta imensidão que o olhar já não abrange,
e,

quando me sento no meio de mim,
fala-me o eu que eu sempre serei.

descansam os outros.

II

descobre-nos,

descobre-nos no meio das orquídeas
que o nevoeiro escondeu

como se não existissemos, apenas sussurros

incompletos, repetidos.

e mesmo que invisiveis fiquemos na terra onde regressámos,
ficarão sempre as saudades

do dia em que partimos,



...
[do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti]

terça-feira, 17 de abril de 2012

em flor

Chinguetti,Mauritania—dunas areia,1999©Raymond Depardon/Magnum Photos


...
I


não sei se calarei a minha voz ou o eco,
cego o ego,
pergunto-me se.

Se me envolveste mesmo no sonho
de ontem,
se o respirar era o teu?

Das flores do azevinho que deixaste
esquecidas pelo inverno passado,

ressuscitaram,
enraizadas nos corais amarelos que plantei no soalho de madeira

onde adormecíamos pela aurora.

II

em flor
da flor branca da orquidea

que o vento transporta em pétala,
migram ao longe
rios até ao mar,

cansam-se as tágides do tufão
que as empurra

como barcos à deriva perto de bojadores sem farol.

Avisa-me quando a solidão chegar ao poema,
se a ode entretanto se afundar

liberta as borboletas azuis
que ficaram aprisionadas pelo mar,

e procura-me no areal que aquela noite

deixou a descoberto,
descobre-nos.




...
[do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti]





domingo, 15 de abril de 2012

dos ventos que são alisios

MAURITANIA—Sunrise between Tidjikja and Tichit,1999
©Raymond Depardon/ Magnum Photos

I

como detesto números
mesmo que sejam perfeitos, primos;

o luar esqueçe-os,
nem as estrelas querem ser contadas,
encantadas,
e

entre o vinho

que escorre de uma caneca com um rei de copas
para a boca,

e o fim da noite,

resta-me contar as horas
que fiquei em silêncio

na sombra quieta da parede. Volta,
descansa nos meus braços.


II

dos ventos alisios

que não provocam chuva no deserto
fica-me a visão perdida,

infinda,
que me atrai ao precipicio,
abro os braços,


reflexo de quem não aprendeu
a
voar,

regresso-me ao mar,
regresso-me a mim, despedaço-me.


Se os ventos alisios regressarem encerra-me no casulo onde escondes as abelhas em flor.


...
([do ciclo dos ventos, das primaveras, de mim, talvez de ti])

sexta-feira, 13 de abril de 2012

[Ensina-me sobre os segredos do olhar de quem eu não esqueci]

ALPES-DE-HAUTE-PROVENCE, France,1985 ©Henri Cartier-Bresson / Magnum Photos

Ensina-me e troca-me o olhar
enquanto tropeço,
afinal a terra parou,

o mar, destapa-se, esperguiça-se nesse algures,
esquece o horizonte
e fala-me dos silêncios,

dos silêncios.

E quantos mais mil anos de memórias terei de me relembrar para voltar nesse dia em preia-mar violenta?

Fala-me do amar, e navega-me até
onde a sede seca os cristais de sal
que o mar deixou esquecidos numa praia deserta,

navega-me até onde os pássaros
imitaram baleias nas migrações,
e voaram,
ou vogaram, tanto me faz.

Ensina-me e troca-me de novo o olhar,
mesmo que a terra se suspenda, se vire e revire,
ou adormeça,

que soprem ventos em remoinhos,
que se enfunem velas esburacadas,
enquanto empurro sem força algumas rochas que o mar esconde,
que me afundam,

que me obrigam a ficar,
que reste o branco das orquídeas que um dia te ofereci.

Ensina-me a regressar mesmo que a água encharque o barco,
e que as borboletas que morrem a voar
sejam enterrados no lado azul do céu.

Ensina-me a silenciar
todos os silêncios que me acordam todos os pesadelos.

Ensina-me sobre os segredos do olhar
de quem eu não esqueci.
Ensina-me.



quarta-feira, 11 de abril de 2012

[Da magia que envolve a loucura]



Da magia que envolve a loucura,
confesso-me como um louco,
não pela magia,
não por escrever,
não

por descrever imagens que querem tocar sons,
sons que só existem em mim,
em ti,
e como eles serão sempre diferentes

da loucura que resiste, que invade,
que me invade como o mar em maremoto,
como os cravos de abril, vermelhos
cor do sangue.
Será o sol que me encadeia sempre a mesma coisa nos mesmos reflexos que ficam e resistem nas tardes em que esperava por ti? E riamos quando pisavamos as sombras de nós, e repetias:

quero os versos curtos,
rápidos sem respirar,
que envolvam alma,
sem as pausas
do choro,
silencia-se
a pele arrepiada
tocam-se de caricias
os amantes ocasionais,
como uns loucos,
beija-me, toca-me,
envolve-me de ti,
ou apenas em ti”.

[seria do sol, do mar em abril?]

Saberemos uma noite destas explicar-nos, será que a loucura necessita de uma causa para deixar de o ser, serão os cravos de abril sempre os mais belos de todos?
Navios ancorados pelos mastros,
com as quilhas descobertas
onde gaivotas pousam
e as crianças brincam,
e os poetas embebedam-se,
vomitam algumas palavras,
querem as cores brilhantes,
os sonhos coloridos,
e mesmo que as memórias
escureçam o papel,
nas terras mais distantes,
dos sabores da canela
naquela cor do açafrão,
restarão as marés,
restará um sorriso
que afasta silêncios,
restarão as confissões
de alguns loucos.

Solto o beijo no final do texto que pari e finjo a partida da loucura atrás do verso... dos rios que um dia nascerão do mar,
da terra que girará ao contrário,
dos cravos vermelhos plantados nas quilhas
dos barcos ancorados pelos mastros não sei, nem aqui,
nem mesmo ali.


[Que texto filho de puta que puxa pela voz, gritar e gritar pelo seu lugar ao sol...]

segunda-feira, 9 de abril de 2012

[um dia quebrarei alguns ventos norte]

Cataratas do Niagara,2005 ©Alec Soth/ Magnum Photos

Um dia quebrarei alguns ventos norte,
silencia-me,
sim, silencia-me,
enquanto a alma se enfuna e voga
para além do mar, porque não afora
como se as margens não se avistassem [?],
e os faróis se desligassem pela passagem
de um cometa qualquer, ilumina-me a rota,

e mesmo que alguns barcos não resistam
a tantos remares,
repito-te nos gestos, sim,
diferenciando-os depois da pele rasgada,

trespassa-me com as mãos, que
um dia,
se enovelaram no meu corpo.

E não te escrevo sobre o amar,
sim, do amar que se encabrita
e extenua, debilita-me e foge,
sim, que tudo transforma de saudades,
até estes ventos norte que um dia quebrarei,
um dia serei.

E não te descrevo o mar,
sim, do mar que me adormeçe alguns nevoeiros,
que me reflete de dia,
mesmo imagens distorçidas nos oásis de nenúfares
que ficam no meio dos sargaços.

Querem-se os corais em cor,
encaminho-os pelas palavras que o silêncio escolheu sem compreender como são belos,
como se a beleza não me silenciasse sempre,

como se te renunciasse.

Acorda-me, silencia-me, enquanto os teus lábios procuram os meus, respira-me nos ventos norte que um dia quebrarei,
e serei um sopro,
e serei um gigante.




domingo, 8 de abril de 2012

[...e como as amendoeiras ainda resistem]

Évora, Portugal, 1999, Mark Power / Magnum Photos

Penso-te sempre, no sorriso, no silêncio
mesmo que representado por uma cruz,
pela madeira que range,
não, não sussurra ou murmura, range,
disseste-me,

e que dizer das saudades, perguntaste-me,
jamais te soube responder,

como se a cor do vinho inundasse a cor dos morangos,
e nesta libertação dos medos, das tristezas,
das mágoas,
restasse a certeza de que o sol renasceria,
porque não haveria de ressuscitar amanhã

inundando um outro dia[?], e agradeces,
agradeces...

Olho a vida em volta que me cansa,
não, não se repete ou se transforma
nos estilhaços suaves das rajadas de vento,
ou nas brisas da primavera em flor,

[ah... e como as amendoeiras ainda resistem
em silêncio, sim, repeti o silêncio que não queria mais],

e naquelas labaredas que já não me açoitam
mais,
meço a distância até ao horizonte como se alguma fuga me respondesse aos dias enevoados sem caminho, me respondesse às perguntas que ficaram nos vulcões adormecidos,

adormecidos até um outro dia, e agradeces,
agradeces...

Ficam as saudades que inundarão sempre o mar,
que o aprisionarão,
encurtando-lhe as margens com novos bojadores,
com outros promontórios, mas jamais conseguirão suster
o canto das baleias,

e agradeço, e agradeço-te sempre,

o dia, a noite, o mar, mesmo o silêncio.

[Silêncio, que repito novamente, silenciando-me nos areais que os mares de inverno deixaram para trás, jamais os esquecendo].

Iluminar-se-ão as tempestades que resistem.